Monday, December 05, 2005

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“Ensina-nos a contar os nossos dia, de tal maneira que alcancemos corações sábios” (Psa.90.12)

“Seems so easy
Just to let it go on by
Till you stop and wonder
Why you never wondered why”
(Nick Drake – “Fruit Tree” )

(“Parece tão fácil
Deixar passar e não ver
Até que você para e se pergunta
Por que você nunca perguntou por que”)



A porta abriu-se quebrando um silêncio que parecia perdurar a séculos naquele quarto. A poeira dançava, como só a poeira sabe dançar, em um único raio de luz que se estendia do seu delta luminoso na janela, que um dia havia sido branca, até o chão, formando um pequeno quadrado amarelado no carpete marrom. Um violão de madeira escura, faltando uma das cordas Mi, encostava-se contra a parede no mais completo abandono. Clarice passou os olhos embaçados pelo quarto, reconhecendo o terreno; tudo estava exatamente como ela deixara há um dia atrás, mas também, como poderia ser diferente? Caso tivesse sido diferentes talvez ela tivesse trocado as cordas do violão, quem sabe até tirado um dia para pintar o batente de sua janela ou deixar-se ensurdecer pelo som do aspirador de pó. Poderia ter cortado suas unhas do pé, ou pintado as da mão de alguma cor audaciosa, aprendido a programar o vídeo K7 ( que ela agora chamava de “vídeo-é-o-cacete” pois ambicionava um aparelho de DVD ). Mas todas essas atividades, que agora pareciam muito agradáveis, haviam sido adiadas mais uma vez, por motivos de força maior e motivos de fim de forças. Na pequena cozinha, abriu a geladeira e encarou suas entranhas frias e vazias, o que não a incomodou uma vez que ela só queria água e água encontrou. Encheu seu copo até a borda e ao sair deslizou os dedos pelo interruptor que acendia a luz do quarto. Porque jamais abria as janelas e aproveitava a luz do sol? Não se tratava de uma preferência pela lâmpada 400s Walt, abrir a janela simplesmente nunca passava por sua cabeça – apertar o interruptor era mais natural, uma vez que ela só ficava ( acordada e consciente ) no apartamento durante a noite – o dia e as suas horas encharcadas de luz pertenciam a Orfeu.
Sobre a TV um calendário com o dia 18 de agosto marcado em vermelho, um lembrete do que a mantivera quase sempre fora de casa naqueles últimos dias, lembrete do cheiro de éter nos corredores largos e estéreis, das faces indiferentes de enfermeiras de mãos indelicadas, as horas da vigília silenciosa gastas encarando os pingos silenciosos do soro, o psicólogo cuja idiotice o imunizada contra as tiradas sarcásticas de Clarice. “Eu sei como você se sente”. Mas é claro que não sabia. Nada a irrita mais do que pessoas com a pretensão de aliviar a dor de outras através de uma compreensão inexistente, especialmente naquele caso, sendo o pretensioso um perfeito estranho. Beira o desrespeito achar que o impacto da morte de um pai pode ser diluído por observações jungianas, ou qualquer outra forma de articulação racional. O padre não a irritava tanto, ela sabia que sua dor transcendia a percepção lógica da realidade tanto quanto a fé dele em Deus. Consolava ela, mas sem esperar que ela fosse consolada, era gentil, tinha as mãos rudes e pequenas, que constantemente se acariciavam. Os médicos também não despertavam raiva nela, com suas explicações complicadas que Clarice não se esforçava para entender. Para ela não fazia diferença entender o funcionamento de um rim ou o que leva uma infecção a se tornar incontrolável. Também não se aliviou em nada quando lhe informaram que ele havia morrido sem sentir dor. Que diferença poderia fazer o jeito como ele se sentia quando estava tão perto de não sentir mais nada?
É impressionante o quanto uma morte é trabalhosa para os remanescentes vivos ao redor dela. São muitas as coisas a serem feitas e Clarice se ocupou de todas elas com uma energia maníaca, quase ignorando as implicações pessoais de suas ligações para funerárias, advogados e parentes há muito esquecidos. Usou a mesma postura que os médicos haviam usado ao dar a notícia; adotava uma voz baixa e calma, narrava o acontecido ilustrando tudo com jargões médicos, dizia o mesmo a todo, guiada por algumas palavras-chave: auto-imune, glomerulonefrites, infecção, colapso. Sempre tentava desligar o telefone antes das interjeições de piedade para a pobre órfã Clarice, que não está sozinha no mundo por poder contar com o infindável amor desses estranhos dos quais as lembranças das faces são menos claras do que a do gosto dos salgadinhos consumidos nos encontros familiares em que os viu pela única vez em sua vida. Clarice recusava gentilmente toda a ajuda que lhe era oferecida para os preparativos do enterro ou do funeral. Ela supunha que caso se mantivesse o mais ocupada possível não teria tempo para lamentar a morte de seu pai. De fato, tão atarefada estava que não lhe sobravam horas para sentar-se no escuro encharcando álbuns de fotografia com lágrimas. Clarice tinha plena consciência de que esse ritual era inevitável e só poderia ser, no máximo, atrasado. Conforme a data do enterro se aproximava ela se tornava cada vez mais inquieta, prevendo o tão adiado confronto com o fantasma do homem que ela enterrava. Mesmo assim, fez de tudo para protelar esse momento, constantemente remarcando datas e horários, fazendo questão de rosas vindas de Barbacena, esforçando-se para localizar o padre da congregação que seu pai freqüentava –o padre encontrava-se no Vaticano batalhando a canalização de algum homem que ele clamava ser santo.

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